domingo, 7 de abril de 2013

O Grito

Mais um pequeno conto para vocês. Espero que comentem.

O Grito

Quando o sol centralizou-se no céu foi que Marlon sentiu sede. Medo também. Já fazia uma hora que parara naquele lugar abruptamente. A terra era árida e seca, cheia de rachaduras que se arrastavam pelo chão, sem fim aparente. O calor do sol escaldante torturava seu corpo. Não havia sequer um resquício de nuvens naquele céu que parecia querer cegá-lo.

Ao longe, esparsamente espalhadas, havia umas poucas árvores de galhos retorcidos, cascas ressequidas e folhas escassas; sob seus pés descalços, um mato rasteiro e seco mantinha-se firme à terra, embora tivesse uma aparência sem vida, de sequidão mórbida. Embaixo de uma das árvores, viu duas girafas tranquilas tentando alcançar as folhas, e aproveitando da pouca sombra também, percebeu.

Continuou andando para o que achou que fosse o norte. Em algum momento durante a caminhada, viu vários elefantes afastando-se para o leste. Pensou em segui-los. Provavelmente encontraria água. Mas poderia se perder... A ideia pareceu-lhe ridícula. Já estava completamente perdido; poderia se arriscar a ir aonde quisesse.

Seguiu-os, mas à distante. Então ponderou. Ele estava na África? As características que via eram fortíssimas, mas como? Como fora parar ali repentinamente?

Não andou muito até que ouvisse berros de medo e dor. Não era um som produzido por animais. Eram seres humanos. Perscrutou todos os lados, tentando visualizar mesmo com o mormaço que subia da terra e embaçava a visão. Muito longe, à direita, viu o que poderiam ser cabanas.

Com esperanças atulhando em seu coração, correu naquela direção. Precisava alcança-los e tentar compreender o que havia acontecido. Quanto mais corria, mais percebia o quanto já estava exausto e sedento.

No meio do mato seco, deitado na terra, avistou um grande leão. A cabeça estava virada em sua direção. Freou subitamente, soltando um grito de desespero. Mas o animal selvagem não moveu um músculo sequer. Parecia não tê-lo visto, embora estivesse com os olhos em cima dele. Decidiu que não ficaria ali nem mais um segundo. Prosseguiu correndo, voltando a cabeça para trás para verificar se o leão o perseguia. Nada.

Ao chegar bem próximo das cabanas, Marlon ouviu mais gritos aterradores. Eram humanos, sim. Mas havia alguma coisa errada. Continuou, mas desta vez devagar. Não queria ser surpreendido numa chacina de leões.

Chegou ao lugar. No chão, espalhados para todos os lados sem qualquer cuidado, estavam corpos de homens e mulheres negras deitados, mortos. Tentou acalmar a respiração acelerada pela falta de fôlego. Novo grito propagou-se, agora mais alto. Vinha de trás da cabana logo a sua frente. Marlon foi até lá, devagar.

A cena fora a mais intrigante de sua vida. Sentado no chão estava uma criança em prantos. Era negro como o carvão, o cabelo crespo. Seu corpo era magérrimo. As lágrimas desciam de seus olhos e traçavam uma cova de dor na face suja de terra do menino. A pele transparecia, no entanto, a maior resistência que ele já vira. E nisso, sua pele era contraída sem controle contra o próprio corpo.

Na frente do garoto, uma mulher tão negra quanto ele estava ajoelhada no chão. Chorava. Em pé, diante dela, havia um homem branco, com olhos inundados de escárnio, que sorria para a situação. No início e para sempre, o que mais atormentou Marlon fora a forma destoante em que as peles do homem e da mulher se comparavam. Branco e preto. Preto e branco.

O homem levantou a mão, e nela um chicote de couro foi brandido contra a mulher. Um urro de dor esvaiu-se por sua boca. Cuspiu sangue involuntariamente. Mas manteve-se firme, na tentativa de proteger seu filho. A mão branca levantou-se novamente e o movimento fora perfeito. O chicote de couro envolveu o pescoço da mulher, que soltou um berro de sofreguidão tão alto que doeu o tímpano de Marlon, o espectador.

A mulher começou a ofegar, afoita, com ira e ódio. Segurou o chicote com as duas mãos e tentou puxa-lo e empurra-lo com toda a força que lhe sobrara. Mas não fora suficiente. Continuou bufando, cuspindo e tentando inspirar e expirar o ar. Morreu pouco tempo depois, sem poder despedir-se de seu filho.

A mão branca desenrolou o chicote do pescoço da mulher, mostrando três seguimentos de marcas deixadas ali para sempre. A criatura de pele branca olhou para o garoto negro que ainda berrava e chorava.

Ao espectador, aquele fora o clímax. A criança respirava com força, e a cada movimento de seu corpo, sua pele contraída parecia ser pressionada contra as próprias costelas por algum poder infame. Aquela dança continuou em câmera lenta, onde a costela tentava, infrutiferamente, rasgar a pele resistente do garoto, que sempre voltava a se estufar. A atenção de Marlon só se distraíra pelo movimento da criatura branca ao lado.

A mão estava levantada no ar novamente, pronta para mais um ataque. O espectador não compreendia o que estava acontecendo. Mas ele avançou. Num urro de raiva, pulou em cima da criatura branca. No mesmo instante o chicote desceu em sua velocidade máxima. Marlon atravessou o chicote e o homem e caiu no chão, estatelado. Um som agudo irreconhecível vazou pela boca de alguém, mas o espectador não quis pensar em quem fora. Tentou virar a cabeça para olhar, mas já não havia mais nada lá.

Estava na sua cama, em seu quarto, suando por todos os poros de seu corpo e remexendo-se sem controle. A respiração saía e entrava por suas narinas com dificuldade, e o som do ar se movendo para fora e para dentro era desesperador. Abriu os olhos. Estava tudo escuro. Empurrou a coberta fina com seus pés e, tremendo em compulsão, colocou sua mão na frente de seus olhos.

A mão era pálida. Branca e pálida. Pálida e branca.

Gritou.

Nenhum comentário:

Postar um comentário