segunda-feira, 11 de março de 2013

Ab imo corde


Ab imo corde*

Tons incolores de cinza. A inexistência da coloração divergia da derradeira cor, a mais pungente delas. Delineando-se desde o seu princípio por uma base insolúvel, crescendo em desalinho até o ápice intragável. O cume era a cor que descolorava. Aquela que se mantinha imponente, subjugando aos seus cúmplices um emaranhado indizível de compreensões e emoções.

A menina... A menina prendia-se a paisagem num fiapo de real cor. Assistia-a entorpecido, enquanto seu coração, de um vermelho escarlate, pulsava e causava o efeito descolorante no cenário ao redor. Nada se comparava àquela cor.

***

Com os últimos centavos que ganhara balançando ritmicamente em seu bolso, a menina caminhava pela rua de paralelepípedos, devaneando sobre a vã filosofia, que hora propunha-se a duvidar, hora afirmava sem hesitar.

A menina, ainda muito nova, dedicou-se sumariamente aos estudos da filosofia, sociologia, antropologia e literatura. Não que ela tivesse real intenção em se considerar a diferente em meio às outras pessoas da sua idade. Mas sair para brincar na rua, divertir-se com amigos e interagir com os outros de forma geral, invariavelmente nos leva a ter parte de nossos segredos revelados, mesmo que involuntariamente, segundo seu pai. E ela não queria isso. Fechou-se para a vida, voltou-se para os estudos.

“Mas não com tanta eficácia”, pensava a menina enquanto continuava a fazer sua trajetória. Na escola, costumava excluir-se de grupinhos e observar os outros com atenção. Foi dessa forma que se deparou com outra menina que fazia exatamente o mesmo que ela. Tímida e quieta, evitava o contato com os outros e os observava, faminta por vivacidade. Trocaram olhares, mas não se assustaram de imediato. Só quando perscrutaram os olhos uma da outra foi que um súbito de compreensão tocou-as, irreverente.

Eram iguais. E souberam, naquele instante, a característica que as igualava. Não era a aparência, nem o que toca no quesito personalidade, mas outra coisa. A reação de reconhecimento fora inteiramente incomum, perceberam, mas contundente e irrevogável. No entanto, nunca tiveram coragem de conversar. Aquele olhar fora o único contato que tiveram.

Mas agora a menina decidira. Caminhava em direção a escola e estava preparada para conversar com a outra. Com certeza, ela também se sentiria confortável com alguém igual. Afinal, aquilo as uniria. Quem pensaria que algo como aquilo provocaria alguma união agradável?

Chegou a sala, sentou-se em seu lugar e sorriu para a outra. O sorriso assustou a si própria. Há tempos não esboçava um sorriso em sua face. Parecia estar errado, desconcertado em seu rosto. Desaprendera a sorrir? Pensou que sim, mas não teve certeza.

No intervalo escolar, já havia decorado para onde a outra ia. Era sempre o mesmo lugar, propício para isolar-se. Correu à calçada da escola, onde o moço que vendia balões a gás hélio ficava, e gastou o resto do dinheiro que tinha comprando um balão. Escolheu um que tinha o formato de um coração, com delineação delicada, e era de um lindo vermelho. Considerou-o um bom presente.

Retornou para a escola e foi ao lugar em que a outra estava. Ficou temerosa, mas seguiu em frente. Já havia começado, que terminasse agora. Enquanto aproximava-se devagar, viu algo escrito numa das paredes desbotadas da escola, próximo ao lugar em que a outra estava. “There is always hope”. Num átimo de compreensões, tudo interligou-se em sua mente. O coração acelerou-se com a ansiedade e ela começou a tremer. Mas estava confiante; nunca se sentira assim. Até mensagens em inglês escritas anonimamente nas paredes pareciam confabular para o seu bem.

Chegou ao seu alvo. A outra encontrava-se sentada no chão, encostada à parede da escola, comendo o seu lanche. Quando a sombra da menina projetou-se sobre ela, a outra olhou para cima e sentiu-se extasiada. 

– Oi – disse a menina, com delicadeza.

Sorriu novamente e pareceu mais confortável. Achou que se continuasse a praticar, logo poderia fazer como as crianças que gargalhavam estridentemente.

A outra menina continuou fitando-a, indecisa.

– Não quer caminhar comigo? – Prosseguiu, com o sorriso que perdurava em seu rosto.

Olharam-se com mais intensidade. A menina estendeu a mão que segurava o lindo balão, oferecendo-o para a outra. Pareceu uma oferta cobiçável, a outra hesitou por alguns segundos e sua face expressou o desejo que sentia de levantar-se e conversar.

O desejo incontido, no entanto, não demorou a ser domado. Ela sabia no que isso daria. Seria errado e causaria prejuízos para as duas. Não, doeria, mas faria o correto. Levantou e fitou, pela última vez, os olhos da menina que pareceu o seu reflexo. Balançou a cabeça, negando o contato.

Para a menina, aquele movimento pareceu um sonoro “não”. Ficou estática, enquanto a outra saía da sua frente lentamente. Vultos irreconhecíveis passaram por sua mente, lembranças do seu pai fazendo as atrocidades com ela e o momento em que, num súbito de coragem, contara tudo para sua mãe, que depois de inicialmente desesperada, tornou-se enraivecida e mandara que a menina nunca mais voltasse a falar daquilo. A imaginação do que deveria acontecer com a outra também a invadiu, mas a curiosidade já se fora. Antes, pensara que aquele contato poderia ser sua salvação. Pensara que, de alguma forma, se as duas se tornassem amigas, poderiam ter uma ideia do que fazer.

Então lembrou-se da frase na parede e a achou ridícula. Devia ter sido uma pessoa iludida por uma utopia momentânea que a escrevera. Imbecil, imbecil. Qual a esperança? Talvez fosse a de encontrar alguém com quem partilhar sua dor, e nesse instante esperar que ela corresponda às suas expectativas. Mentira. Nunca corresponde. E nisso há reciprocidade. Você também não corresponde ao que o outro espera.

Sentiu tanto ódio da criatura que escrevera a frase, que deixou escapar uma lágrima por seus olhos. Fora traída e enganada. Quando pensou que sua raiva não poderia mais aumentar, outra possibilidade passou por sua mente. Talvez a pessoa que escrevera a frase tivesse esquecido que a sentença deveria ser interrogativa, e não afirmativa. “Is there always hope?”. Esse é o tipo de regra que geralmente as pessoas esquecem. E o ponto de interrogação perdeu-se na parede com o tempo. Não faz mal, pois a menina perdoou, do fundo do seu coração, a falha da criatura vândala.

Olhou para o céu nebuloso, que predizia uma chuva gélida. Uma radiação iridescente de luz solar ultrapassou as nuvens e refletiu, frágil, na face da menina, secando a única lágrima que escorreu. Levantou a mão e soltou o balão. Enquanto subia os seus primeiros centímetros no ar, em liberdade, a menina teve um vislumbre de si mesma. Estava tudo cinza, exceto o balão escarlate que a desamparou.


*Ab imo corde: do latim, "Do fundo do coração; sinceramente.", segundo o site Dicionário de Latim.

Nenhum comentário:

Postar um comentário