quinta-feira, 2 de maio de 2013

Assalto

Edgar Allan Poe é sempre uma boa influencia, não é? Para mim, sim. O cara é um gênio da ironia, do assassinato e do próprio raciocínio analítico, caracterizado pelo ato de observar. E afinal, o que é Sherlock Homes sem "Assassinatos na Rua Morgue"? Nada. 

O conto deste post foi fortemente inspirado na sensação que a minha leitura mais recente - um livro de contos do Poe - me trouxe. É um conto macabro, narra uma situação trágica e lúgubre, mas no fim eu achei o protagonista muito peculiar. Nunca escrevi algo nesse estilo, mas foi interessante. E a forma como eu tive a ideia é ainda mais peculiar... quem quiser saber, terá que me perguntar nos comentários. Agradeceria se o fizerem.

Boa leitura.

Assalto

A mulher me olhou e gritou esganiçada. Corri e tapei a boca dela com a mão. Em meu ouvido, o velho gongo soou baixinho. Eu não podia ter medo nem compaixão; precisava ter convicção para ameaçar. Se eles não fossem imbecis, tudo correria bem. Mas se fossem...

É bem provável que ela tenha gritado por causa da arma que estava em minha mão. Uma bela e potente arma, eu diria. Talvez eu fosse um idiota por aparecer assim abruptamente, mas quem me culparia? Este era apenas o meu primeiro assalto.

Tirei a fita adesiva e a corda da mochila em minhas costas, calei a boca da mulher e amarrei os pulsos e tornozelos dela. Enquanto se debatia no chão, desesperada, lançando em mim olhares pedintes, lágrimas escorreram por seu rosto. Essa imagem me trouxe à lembrança as vezes em que minha mãe teve convulsões antes do AVC que a levou para a eternidade. E isso me deixou com raiva, odeio me lembrar da morte da minha querida mamãe.

Nas escadas, ouvi o som atrapalhado de passos. Devia ser uma pessoa esperta, porque não fez escândalo, vinha sorrateiramente para saber o que estava acontecendo. Por pouco não fui pego desprevenido. Antes que aparecesse, deixei a mulher estirada no chão e corri ao canto da sala onde não podia ser avistado de imediato.

A mulher gemeu mais alto. Tinha percebido que alguém estava vindo, mas não pôde fazer nada. O som de passos lentos na escada parou por um segundo para ser substituído logo depois por passadas rápidas e apressadas. Um homem grisalho, mas não idoso, desceu os últimos degraus e correu até a mulher. Minha arma estava apontada para ele:

- Mãos ao alto e se afaste dela! – Disse, convicto.

O homem não correspondeu, o êxtase de ver a mulher – que provavelmente era sua parenta – daquele jeito fez com que ele não percebesse mais nada ao seu redor. Então ele começou a desamarrar a mulher, que com os olhos esbugalhados, tentava dizer algo ao outro.

- Para! Não desamarre ela!

Mas ele continuou a desamarrar, com os braços que tremiam atrapalhando-o no ato, sem mostrar nenhuma reação ao que eu disse. Nem mesmo ousou levantar o olhar em minha direção. O velho gongo soou em minha mente, desta vez um pouco mais forte. Não consegui suportar. Apertei o gatilho e um som mudo invadiu a sala, estilhaçando o cenário de murmúrios e gemidos do casal.

O buraco que se formou na testa do homem pareceu fatal. Mas obviamente era. Ele havia caído no chão poucos segundos depois, o sangue jorrando aos montes por aquele orifício tão pequeno, sujando de um belo vermelho o tapete da sala bem ornamentada. A mulher se imobilizou instantaneamente com a queda do outro, e por um minuto tudo permaneceu num silêncio que me atormentou profundamente.

Um som indefinível trespassou o adesivo que tampava a boca da mulher. Era agudo e dilacerava a alma. As lágrimas que desceram dos olhos brilhantes e encharcados dela explicitavam uma tristeza escabrosa. Eu quis voltar no tempo, leitor, mas já não podia. O único jeito foi continuar mesmo...

Com passadas rápidas e longas, avancei até a mulher que estava sentada de um modo desajeitado, observando o homem que teimava em continuar gorgolejando sangue no chão. Toquei em seus ombros delicadamente, mas ela soltou um chiado tão melancólico de medo, mais por meio do nariz que pela boca, que eu fiquei estático. Escorreria catarro das narinas dela. Ela se jogou no piso e começou a se remexer para todos os lados, numa tentativa alucinada e infrutífera de se afastar de mim.

Balancei a cabeça negativamente, com o rancor aumentando em meu coração. Aquela criatura sórdida devia pedir para que eu a matasse ao invés de tentar fugir e manter a vida longe do homem pelo qual chorava tão desesperadamente. Aquilo era só uma farsa para me emocionar, ela não devia sentir nada por ele.

Peguei com brusquidão os cabelos dela e a puxei escada acima sem prestar atenção às lamurias de dor e medo que ela tentava soltar, mas que falhava por causa da bendita fita. Eu tinha que me lembrar de agradecer ao chefe pela sugestão tão eficiente de usar aquele adesivo.

No topo, fui até a porta entreaberta do corredor, entrei e tranquei-a por dentro. Era um escritório. A mulher ainda chorava, mas desistira de gritar. Apenas fungava com força, tentando buscar fôlego. Coloquei um dedo em meus lábios e falei:

- Agora você vai ficar calada e só responder o que eu preciso. Juro que não vou te fazer mal. – Menti, mas este é um daqueles famosos casos em que a verdade é inoportuna.

Agachei ao seu lado e arranquei o adesivo que tampava sua boca. Ela queixou-se da dor, mas sem gritar. Ofegou um pouco e me fitou com aqueles olhos suplicantes, cheios de água. Será que ela estava mesmo triste?

- Eu só quero saber onde está o maldito cofre. Só isso.

Ela me observou com atenção, mas o que eu disse pareceu fazer com que ela chegasse, lá no fundo de sua mente, a uma conclusão do que aconteceria no final de tudo. Seus olhos sempre brilhosos derramavam lágrimas outra vez. Ela começou a soluçar baixo enquanto chorava copiosamente. Meus olhos também se encheram de água involuntariamente.

- Só me diga onde está o cofre. – As lágrimas escoriam por meu rosto enquanto eu me aproximava vagarosamente da mulher imóvel. – Onde?

Sem respostas. Apenas choro. O gongo soa em minha mente outra vez, agora alto demais. Isso já estava me enjoando. Tirei a faca da mochila e encostei-a brutalmente no pescoço da mulher, que voltou a ofegar com medo, mas o desespero anterior havia sumido.

- Vai dizer onde está a merda do cofre ou não? – Cuspi.

Ela abriu a boca, mas apenas um grito saiu de lá. Recoloquei rapidamente o adesivo e estapeei a cara dela, que voltou a ficar quieta. Ela não me contaria nada. Como era idiota... E seus olhos brilhavam de tal forma... me hipnotizavam. Enfiei a faca no seu olho direito, afundei e girei. Ela urrou e se sacudiu, esperneando de tal forma e com tal brusquidão e descontrole, que temi ter matado logo no primeiro ataque. Arranquei a faca de seu olho, mas ela continuou a rolar pelo chão, chiando um emaranhado de sons incompreensíveis. O que ela sentia era só dor, o espaço para sentir falta do outro já não existia...

Eu a assistia também chorando sua situação, mas ela não se acalmava. Comecei a ficar impaciente... O gongo, sempre o gongo. Zumbiu em meu ouvido tão alto que na hora pensei ter sofrido uma lesão nos tímpanos. Coloquei as palmas da mão tampando os ouvidos, esperando a dor parar. Depois agachei ao lado da mulher, segurei-a pelo pescoço e fitei com intensidade odiosa sua face. As lágrimas se transfiguraram, agora eram de sangue escarlate. Sangue infindável. A visão deles não me acalmava.

Vi no olho intacto da mulher um misto dúbio de tantos sentimentos, que hoje chego a cogitar que ela me amou – mais do que o próprio homem que eu havia matado em sua frente. Há sempre aquele sentimento de compaixão para com o vilão dos enredos ficcionais, não é?

Dilacerei a goela da mulher com a faca. Sangue e mais sangue espirou para todo lado, mas ao menos ela ficou quieta. Enfim, estava em paz. E o melhor: com o outro homem que ela amava. Me senti calmo e até com um resquício de felicidade com essa notícia. Eu nunca poderia ter correspondido ao amor que ela sentiu por mim. 

O resto daquele dia tão cheio de brilhos e sons eu gastei à procura do cofre, mas só encontrava documentos espalhados pela casa. Eu era analfabeto, nunca soube o que estava escrito neles. Antes do sol se pôr, coloquei uma roupa limpa, guardei todos os documentos e evidências em minha mochila e saí da casa pela porta da frente, tranquilo.

***

Um jovem alto e forte, de no máximo 25 anos, trajando roupa preta e carregando uma mochila da mesma cor nas costas trancava a porta da casa. Um estudante indo para a faculdade ou visitar um amigo. Quem sabe?

Deixou a chave pendurada na fechadura. Virou-se, respirou fundo, restabelecendo ao seu rosto uma coloração forte e vivaz. Sorriu. Parecia estar feliz. Depois começou a andar, chegou a rua e caminhou calmamente pela calçada.

Fixada na porta da casa havia uma bela placa negra onde se lia em letras brancas:

Aqui vive uma família 
surda, mas feliz.

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